A divisão internacional do trabalho condena sistematicamente alguns
países a se especializarem em certas produções progressivamente
deslocadas dos países desenvolvidos. Isto ocorre principalmente pela
demanda internacional(mercado global) por produções não mais aceitas
nos países de economia central ou por ação dos sindicatos de
trabalhadores ou pela grita de movimentos organizados, com forte
predominância dos ambientalistas e consumidores, que clamam por
produções politicamente corretas ou limpas. As ditas tecnologias sujas
acabam sendo transferidas para locais onde o controle social é
inexistente ou incipiente e inexistem ações de fiscalização pelo poder
público.
Enquanto nos anos 50 a 70, a tendência das empresas transnacionais era instalarem-se em países de economia periférica em busca de subsídios, abundância de recursos energéticos e mão-de-obra barata, nos anos 80 e 90, estas mesmas empresas buscaram, adicional e preferencialmente, proteção para seus investimentos, transferindo tecnologias poluentes e desacreditadas para locais com falta de regulação e de controle social, onde estivessem livres de arcar com a responsabilidade de pesados seguros e ações de reparação de danos que se tornaram, em seus países de origem, a maior causa de seus altos custos, sendo estas últimas a razão de várias falências de grandes corporações, principalmente nos Estados Unidos, em função de condenações para pagamento direto de indenizações das vítimas ou para constituição de fundos prévios. O amianto ou asbesto, matéria-prima cancerígena e de uso disseminado e indiscriminado em mais de 3.000 produtos industriais e banido em 42 países, na sua grande maioria desenvolvidos, é um bom exemplo disto e o usaremos para discorrermos nossas idéias para o debate em questão. Portanto, o modelo de desenvolvimento ainda adotado nos países em desenvolvimento, como no caso o Brasil, é aquele que se baseia na presunção de que a natureza é algo a ser dominado, apropriado, transformado, comercializado e finalmente descartado, e em idéias de progresso e modernidade comumentemente confundidas com noções lineares e evolucionistas de desenvolvimento econômico. Como conseqüência desta errônea avaliação, temos a criação de "nichos de produção" e transferência de riscos em nome de um pretenso desenvolvimento econômico, que não é acompanhado nem em conquistas sociais e muito menos em qualidade de vida e ambiental, constituindo-se numa condenável prática conhecida como racismo ambiental ou injustiça ambiental. O amianto foi utilizado principalmente como material de construção para cobertura e armazenamento e transporte de água potável e seu boom de produção ocorreu sob a égide do regime militar ditatorial dos anos 70, durante o período conhecido como "milagre econômico", para "acabar com o déficit habitacional do país, por ser um material de baixo custo e acessível às camadas pobres da população". Não se resolveu o grave problema social e, por outro lado, criou-se um seriíssimo caso de contaminação ocupacional e ambiental sem precedentes no país. Ainda hoje, não se tem uma previsão do número de vítimas do amianto no país, mas estima-se que até os anos 2015-2020 serão em torno de 50.000. No exemplo mencionado a seguir, com o mercado global de autopeças contendo amianto, fica patente a desigualdade nos mecanismos regulatórios e sociais entre produção e comércio, agravados substancialmente pelas regras que regem o livre mercado global de produtos e bens, que não são as mesmas que regulamentam a produção, fortemente influenciadas pelas conquistas dos trabalhadores por melhores condições de vida e trabalho em todo o mundo. Já o comércio e o mercado global criaram suas próprias formas de proteção(auto-regulação), francamente favoráveis à sua ação predatória. Através da ação global das redes de defesa do interesse público e defensoras do banimento do amianto, também conhecidas como cybercommunities, que se comunicam e agem através da Internet, chegamos, por denúncia do IBAS – International Ban Asbestos Secretariat, a uma empresa em Birmingham, na Inglaterra, produzindo componentes para motores automotivos com 6 diferentes tipos de juntas contendo amianto, que está proibido naquele país desde novembro de 1.999. O IBAS, informado por ativistas anti-amianto na Argentina, acionou imediatamente o Health and Safety Executive (HSE), órgão de fiscalização inglês, que ao constatar a veracidade dos fatos foi informado pela empresa que as juntas eram compradas de um revendedor americano sediado na Flórida e que as mesmas eram produzidas no Brasil, fornecendo os respectivos endereços. Em sua defesa argumentou que não havia qualquer indicação ou rotulagem do produto informando que o mesmo continha amianto, que não teria especificado desta forma, não sabia da existência do amianto e que a responsabilidade era exclusiva da empresa que havia exportado o material. Com esta informação, estivemos em São Bernardo do Campo, Estado de São Paulo, na empresa informada pela corporação inglesa e descobrimos tratar-se de um escritório comercial, contendo apenas um galpão de produtos acabados, dedicado à exportação de autopeças. Era na verdade um "atravessador" ou intermediário do setor automotivo, buscando em pequenas empresas brasileiras as que oferecessem o menor preço, sem uma trademark ou marca comercial. Por serem empresas não competitivas no mercado internacional do setor automotivo, não dispondo das certificações necessárias, o atravessador agia, segundo ele, em defesa das pequenas empresas, re-embalando o produto, etiquetando-o com sua grife e nome respeitado no mercado internacional por ser detentor de várias ISOs, QS e, sustentado por seu parceiro americano, exportava estes produtos. Ao ser multada por comercializar produtos contendo amianto sem para isto estar devidamente registrada no Ministério do Trabalho e Emprego, como exigido por lei, por não informar ao consumidor final os riscos, por não afixar qualquer rotulagem de advertência e de que o produto continha amianto, o intermediador do comércio global alegou em sua defesa que o produto era protegido pela lei do uso controlado do amianto(Lei 9055/95), mostrando-se um expert em leis, que protejam seus negócios, e totalmente leigo no que dizia respeito à proteção da saúde dos trabalhadores e consumidores em geral. Da mesma forma, informou que a empresa inglesa não fez nenhuma restrição quanto ao produto conter amianto e que ele não era obrigado a conhecer as leis internacionais de banimento deste material. Por fim, alegou que não cumpria a lei brasileira do Ministério do Trabalho e Emprego e outras como as exigências do CONAMA sobre rotulagem do produto e instruções para seu uso porque ele era um exportador e não vendia seus produtos no mercado nacional, não submetendo brasileiros a nenhum risco, e que seus clientes não podiam ler português, tornando-se uma medida inócua alertá-los sobre os riscos do amianto em nossa língua. Exigido o nome do fornecedor das tais juntas de amianto, nos dirigimos para Taboão da Serra, na região de Osasco, e inspecionamos o fabricante das mesmas. Não é preciso mencionar como eram ruins as condições de trabalho nesta empresa! Os trabalhadores estavam expostos ao amianto sem nenhuma proteção, nem sequer uma máscara anti-poeira decente lhes era fornecida, nem tampouco outras medidas como lavanderia para lavagem de uniformes(que também não eram fornecidos), exaustão, limpeza por aspiração, exames médicos, vestiário duplo, avaliação ambiental de poeira respirável etc., existiam no local. A empresa foi interditada, com total apoio dos trabalhadores e sindicato local, e só pôde voltar a produzir sem o amianto e com diversas modificações empreendidas. No local, encontramos várias autopeças que eram produzidas e embaladas em nome de uma grande multinacional alemã, que distribuía para as principais montadoras do país. Também não continham qualquer indicação que o produto contivesse amianto, constituindo-se numa prática de duplo-padrão, já que na Alemanha o amianto está proibido desde 1.993. Este exemplo nos remete a indagações mais profundas e análises complexas sobre o papel desempenhado pelas instituições, tanto nacionais como internacionais, e dos tradicionais fóruns de discussão sobre trabalho, saúde, meio ambiente, como OIT – Organização Internacional do Trabalho e OMS – Organização Mundial da Saúde, e vemos nitidamente um fortalecimento e um deslocamento cada vez maior de decisões desta área para a OMC – Organização Mundial do Comércio, que foi quem definiu em 2.001 que o "uso controlado do amianto" não era realista e que os países poderiam bani-lo para proteção da saúde de suas populações, não se constituindo em violação das regras do livre comércio. Esta disputa levada a cabo por Brasil, Zimbábue e Canadá contra a França, que tinha aprovado lei para o banimento do amianto em 1996, foi definida em um tribunal com amplos poderes para julgar, punir, retaliar comercial e economicamente a França, caso ela tivesse sido condenada por prática de "injustas" barreiras alfandegárias. Esta ação, que, neste caso, foi favorável ao pleito do movimento internacional que luta pelo banimento do amianto, foi apreciada e decidida apenas por juízes da área de economia e comércio, sem nenhum conhecedor da área de saúde, trabalho ou meio ambiente, que apenas foram ouvidos em um painel técnico por questões formais e, que diga-se de passagem, ocorreu num sessão sonolenta após lauto almoço no suntuoso prédio da OMC na Suíça, à beira do tranqüilo lago Le Mans, onde a maior parte dos árbitros dormitavam. Fica para nós, portanto, representantes dos movimentos sociais, um grande desafio: como afrontar as elites do poder global? Para isto defendemos, entre outros, o empoderamento dos movimentos sociais localmente e o reconhecimento dos mesmos como constituintes de um movimento internacional agindo globalmente e que se contrapõe a este modelo injusto e excludente. Seremos nós um movimento antiglobalização ou fazemos parte de uma nova classe política mundial de resistência anti-hegemônica ou de uma globalização que vem de baixo? Estas respostas vão depender, fundamentalmente, do nível de articulação, que deve buscar o nivelamento das relações sociais de poder entre o local e o global em nome dos mais despossuídos, respondendo às elites do poder global, reforçando os poderes locais e planejando as ações locais para agir globalmente. Para isto, podemos dispor de instrumentos de ação global tais como as redes transnacionais de consumidores e trabalhadores, usando o poder de compra e venda como instrumento político global de uso local, como por exemplo os boicotes a produtos e serviços feitos planetariamente contra empresas que exploram recursos não renováveis e ameaçados de extinção, que exploram o trabalho infantil, bem como as redes de defesa do interesse público, como por exemplo as ligadas à área de direitos humanos, dando publicidade a informações e criando vínculos de solidariedade, informações estas usadas como ferramenta poderosas de transformação e de nivelamento das relações sociais . Por fim, gostaríamos de defender uma bandeira que vimos perseguindo juntamente com outros tantos ativistas sociais em todo o mundo que é o da criação de um organismo internacional para ouvir e julgar os crimes cometidos pelas corporações contra os interesses e direitos dos cidadãos, a OMC- ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DOS CIDADÃOS, nos moldes dos tribunais de Haia ou Nuremberg, constituído de modo permanente, e não somente em tempos de conflitos, e que proteja os interesses dos cidadãos da mesma forma como a OMC faz, na defesa intransigente dos interesses do mercado global, e com plenos poderes para punir e retaliar países, governos e corporações. Neste sentido, reproduzimos a definição de Mahatma Gandhi sobre os 7 Pecados Capitais: Riqueza sem trabalho, Prazer sem Consciência, Conhecimento sem Caráter, Ciência sem Humanidade, Devoção sem Sacrifício, Políticos sem Princípio e Comércio sem ética/moral, cujo grifo é nosso.